A evolução da medicina nas últimas décadas tem culminado em terapêuticas nunca antes pensadas. O transplante de órgãos e tecidos, iniciado nos anos 60, apresentou-se como uma perspectiva de melhora de doenças até então consideradas irreversíveis, incrementando dramaticamente a qualidade e a quantidade de vida dos pacientes com órgãos insuficientes. Durante os anos subseqüentes, esta nova modalidade de tratamento desenvolveu-se e as suas indicações ampliaram-se, gerando uma nova situação: o número de pacientes necessitando de órgãos cresceu de forma exponencial, enquanto o número de doadores permaneceu estagnado ou aumentou lentamente. O pequeno número de doações de órgãos se deve, principalmente, a recusa da família em doar os órgãos do seu ente querido no momento da sua morte. Assim, a disparidade entre o número de pessoas necessitando de um órgão vem crescendo a cada dia. Portanto, há uma necessidade de desenvolver mecanismos efetivos para elevar o número de doadores, já que a grande maioria das pessoas é favorável à doação de órgãos, porém a família acaba alterando o último desejo do paciente.
Nas últimas décadas, o advento de novos procedimentos, medicações e técnicas cirúrgicas, promoveu uma modificação no entendimento do que é morte, pois a grande maioria dos pacientes graves encontram-se em unidades de tratamento intensivo, com suporte ventilatório e diversas medicações que os mantém estáveis (batimentos cardíacos, pressão arterial adequada, oxigenação) por um determinado período de tempo. Devido a isso, muitas pessoas e muitos trabalhadores da área da saúde ficam confusos em dizer quando o paciente está morto, já que há função cardíaca preservada e respiração com ajuda de aparelhos. Para solucionar este problema, o termo morte encefálica vem se desenvolvendo nas últimas décadas e, conceitualmente, denota a completa e irreversível perda da função do encéfalo, ou seja, a morte encefálica, comprovada pelos testes clínicos e pelos exames complementares, indica que não há mais a possibilidade de reversão do quadro do paciente, independentemente das medidas utilizadas. É neste novo contexto que médicos, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos devem basear-se para abordarem as famílias e informá-las sobre a irreversibilidade do caso e da necessidade de tomada de decisões sobre o fim da vida de seu parente. Assim, entende-se que há uma mudança dos objetivos a serem alcançados, passando daquele de salvar o paciente para outro, qual seja uma morte sem sofrimento ou a doação de órgãos. Coerentemente, a decisão deve basear-se nos valores que o paciente tinha e nas suas crenças. A transição destes objetivos é bastante difícil, em vista da agressividade dos tratamentos instituídos nas unidades de tratamento intensivo e, muitas vezes, na dificuldade do pessoal da área da saúde em enfrentar o processo natural de morrer. Paralelamente, o apoio aos familiares, bem como dar-lhes o tempo necessário para realizar esta transição constitui um dos mais importantes aspectos do bom atendimento. Além disso, diversos estudos demonstram que a abordagem da família explicando a gravidade do caso desde o início do quadro, mantendo-os informados da evolução e a disponibilidade em atendê-los facilita o entendimento entre as partes, reduzindo o estresse, bem como favorece a cooperação dos familiares e aumenta a satisfação com o atendimento médico.
Atualmente, os transplantes de órgãos são procedimentos salvadores de vidas e, desta forma, quando há morte encefálica e se propõe que ocorra a mudança dos objetivos com relação ao fim da vida do paciente, entra na questão a possibilidade da doação de órgãos. Nos EUA, morrem 18 pacientes por dia na fila de espera por um órgão e a espera por um rim de doador cadáver dura em média 3 anos. Além disso, a fila de espera por um órgão neste país cresceu 70% na última década, apesar de ser um dos países com maior número de doadores do mundo. Sabendo-se que a decisão da família é a principal determinante na doação de órgãos cria-se um esforço enorme em convencer estas famílias a concordarem com o desejo da maior proporção de pacientes, que é doar seus órgãos. Entretanto, os potenciais doadores de órgãos, habitualmente, compreendem pessoas jovens e com vida sócio-econômica e cultural ativa que apresentam um evento catastrófico em suas vidas (traumas, hemorragias cerebrais, entre outras), causando um estresse enorme para os familiares. A partir do momento da tragédia, desencadeiam-se, nos familiares, diversos mecanismos de defesa à nova situação, obrigando-os a tomarem decisões sobre o final da vida destes pacientes de forma abrupta e inesperada. Neste momento de extrema dificuldade para os familiares, a equipe médica deve trabalhar de forma clara e explicar sobre as possibilidades terapêuticas, criando um ambiente de forte confiança, bem como informando-os da capacidade de recuperação ou não do paciente, dando tempo para a família pensar nas suas difíceis decisões. Grande parte da dificuldade das famílias aceitarem a doação de órgãos é devida ao desconhecimento do que significa a morte encefálica e, por conseguinte, da impossibilidade de reversão do caso, do entendimento de que seus entes queridos não ficarão com deformidades ou desfigurados no momento do velamento e do desconhecimento, por parte dos familiares, da intenção de doar os órgãos ou não do paciente. Por fim, deve-se enfatizar que a possibilidade de ajudar outras pessoas e suas famílias, com um sofrimento semelhante, através da doação de órgãos e o transplante é uma das formas de transformar a dor da perda num ato de generosidade.
Em suma, a mudança dos paradigmas relacionados à morte, ao cuidado e às decisões no fim da vida dos pacientes deve ser abordada de forma segura e clara por parte da equipe médica, gerando conforto e reduzindo o estresse de uma situação de agravo grave à saúde. Entende-se assim, que o maior número de informações possíveis dadas logo no início do atendimento, associados a uma relação médico-família baseada na confiança constitui-se na melhor forma de abordar a família no momento de declarar sobre a possibilidade de recuperação do paciente ou não, bem como sobre a morte (encefálica) do seu ente querido. Desta forma, os familiares poderão discutir e definir a conduta a ser tomada da maneira mais correta, seja ela o alívio da dor ou a doação de órgãos.