ANGEITE PRIMÁRIA DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL (SNC): UMA BREVE REVISÃO

Dr. André Façanha

Residência em Radiologia HC/USP/RT


O texto a seguir trata, de modo resumido, de alguns aspectos gerais da forma primária de vasculite do SNC. Aqui não se pretende realizar uma revisão compendiosa a respeito dessa afecção, mas antes reunir informações para uma introdução ao assunto, tomando por artigo base a revisão de autoria de Hajj-Ali et al. publicada 2009(1).

Numa definição ampla, a vasculite do SNC pode ser dita como angiite primária do SNC (APSNC) quando confinada ao SNC e secundária quando associada a outras manifestações sistêmicas.  APSNC foi inicialmente descrita como angiite granulomatosa fatal progressiva por Cravioto et al.(2) – ficando posteriomente denominada de Angiite granulomatosa do SNC (AGSNC).

Os primeiros critérios diagnósticos foram propostos em 1988(3): presença de défcit neurológico adquirido e sem explicação defiinida, na presença de achados angiográficos ou histopatológicos de angiite no SNC, sem outra evidência de vasculite sistêmica ou outra condição que justifique os referidos achados.

Nos anos 1990, percebeu-se que a APSNC compreendia um grupo heterogêneo de subtipos clínicos, com diferentes prognósticos e terapias, incluindo AGSNC e casos atípicos.(1)

AGSNC corresponde a 20% dos casos de APSNC. Predomina no sexo masculino e ocorre em qualquer faixa etária. Em geral, tem pródromo prolongado, mas alguns pacientes apresentam quadro agudo. Carece de achados de vasculite sistêmica, tais como neuropatia periférica, febre, perda ponderal e alterações cutâneas. Como pode afetar qualquer parte do SNC, não há grupo de sintomas específicos. Pode cursar com os seguintes cenários clínicos: cefaléia crônica; encefalopatia; AVC/AIT´s (geralmente recorrentes); convulsões; alterações cognitivo-comportamentais; anormalidades sensitivo-motoras focais; ataxia; mielopatia.

Na ausência de doença sistêmica ou de outros processos patológicos, pode-se suspeitar de AGSNC em quadros de meningite crônica, sintomas neurológicos focais recorrentes, disfunção neurológica difusa ou mielopatia sem explicação.

Os achados histopatológicos típicos são de arterite de pequenos e médios vasos da leptomeninge e do córtex, de aspecto necrotizante ou linfocítico, com células gigantes do tipo Langerhans ou do tipo corpo estranho, cursando com redução luminal, oclusão e/ou trombose vascular e consequente isquemia/necrose dos tecidos afetados.

O fator desencadeante é desconhecido. Postula-se falha do sistema imune em conter a ação de um presumido agente viral que causaria o processo vasculítico.

Um grande mimetizador da APSNC é um grupo de transtornos caracterizados por cefaléia aguda, com ou sem défcit neurológico, associado a vasoconstricção cerebral prolongada, porém reversível. Esses transtornos foram agrupados sob o termo Síndrome da Vasoconstricção Cerebral Reversível (SVCR). Trata-se, portanto, não de vasculite propriamente dita, mas antes de um grupo de desordens vasocontrictivas, que entretanto compartilham muito da sintomatologia da APSNC.

A SVCR, inicialmente chamada de Angiopatia Benigna do SNC (ABSNC), foi primeiramente descrita em um subgrupo de pacientes que apresentavam eventos neurológicos isolados, de apresentação aguda e curso monofásico, de predominância feminina, líquor normal e achados angiográficos reversíveis(4) (em algumas séries de casos com resolução dramática das alterações angiográficas em 4-12 semanas, sem uso de terapia imunossupressora intensiva(5)). Esses achados levaram a crer numa fisiopatologia distinta, caracterizada não por vasculite, mas por vasoconstricção. Isso levou ao reconhecimento de que a SVCR trata-se assim de um grupo variado de condições que têm em comum o estreitamento luminal multifocal e reversível de artérias cerebrais (demonstrável do ponto de vista angiográfico evolutivo), traduzido em sintomas por cefaléias agudas e graves (“thunderclap”), com ou sem sintomas focais. Logo, sob o termo SVCR se ajuntam entidades anteriormente descritas como a ABSNC, a síndrome de Call-Fleming, a angiopatia pós-parto, o vasoespasmo migranoso e a “arterite” induzida por droga.(6)

Os elementos fundamentais para o diagnóstico da SVCR são resumidos como se segue:

(1)    Vasoconstricção segmentar arterial multifocal documentada por Angiografia Digital, AngioTC ou AngioRM;

(2)    Ausência de HSA aneurismática;

(3)    Líquor normal ou pouco alterado (Proteína< 80mg/%, leucócitos<10/mm³ e glicose normal);

(4)    Cefaléia intensa e aguda, com ou sem déficits neurológicos focais;

(5)    Reversão dos achados angiográficos dentro de 12 semanas do início do quadro;

Então, vê-se que há clara distinção de características clínico-laboratoriais entre a AGSNC e a SVCR. A primeira tem predomínio masculino e curso mais insidioso/crônico, enquanto a outra afeta predominantemente mulheres e de modo agudo. O líquor é francamente alterado na AGSNC, sendo normal ou pouco alterado na SVCR. Do ponto de vista angiográfico, a SVCR caracteriza-se por múltiplas estenoses e dilatações arteriais segmentares, reversíveis em 6-12 semanas. Os achados angiográficos na AGSNC são frequentemente normais, porém, quando há alteração, os achados são pleomórficos (interrupção vascular abrupta em um ou mais vasos, irregularidades luminais em um ou mais vasos e até alterações mais difusas), às vezes com superposição do aspecto de imagem com a SVCR. Nesses casos, os achados são frequentemente irreversíveis.

Outra distinção é o quadro histopatológico. Nos casos de SVCR que já foram biopsiados não há qualquer evidência de processo inflamatório, o que leva a crer que o controle do tônus vascular cerebral é o elemento crítico na fisiopatologia. A alteração desse tônus vascular pode ser espontânea ou causada por fatores endógenos (ex.: tumores serotoninérgicos e HAS não controlada) ou exógenos (ex.: drogas simpaticomiméticas e/ou serotoninérgicas, trauma direto ou neurocirúrgico).

Casos atípicos de APSNC são definidos como aqueles que apresentam achados angiográficos e/ou histopatológicos compatíveis com angiopatia primária, não se enquadrando todavia nos critérios nem de AGSNC ou SVCR. Estão incluidos nesse grupo pacientes com líquor alterado a ponto de excluir a SVCR e pacientes com quadro AGSNC-símile, porém sem características de processo granulomatoso na biópsia. Outros casos considerados atípicos são aqueles que envolvem sítios anatômicos pouco usuais como a medula ou que exibem lesão do tipo “massa”/nodular.

O diagnóstico diferencial da APSNC se faz, claro, com causas secundárias, que devem ser mandatoriamente excluidas. Entre elas destacam-se as infecções (ex.: HIV, Varicella zoster e sífilis, principalmente); vasculites sistêmicas (ex.: poliarterite nodosa, poliangeite microscópica, Behçet, Wegener e Churg-Strauss); doenças do colágeno (ex.: LES, Sjögren, AR, DMTC, dermatomiosite); miscelânea (ex.: SAAF, doenças linfoproliferativas, MELAS, angiopatia amilóide e doença inflamatória intestinal).

A investigação deve seguir baseada em dados clínicos e epidemiológicos bem colhidos. Na APSNC geralmente VHS e PCR são normais. O estudo do líquor e eventuais exames laboratoriais devem ser adequadamente selecionados para excluir causas secundárias.

Estudos de neuroimagem, incluindo TC e RM, não são isoladamente suficientes e específicos para o diagnóstico. A RM é, de modo geral, mais sensível que a TC, tendo sensibilidade de quase 100% nos casos de vasculite confirmados por biópsia. Os achados mais frequentes são infartos corticais e na substância branca profunda, múltiplos e bilaterais, com ou sem realce pelo meio de contraste. Na SVCR não é infrequente que a RM estrutural seja normal. Quando a RM estrutural mostra alterações na SVCR, elas decorrem da hipoperfusão distal à vasconstricção grave – sendo mais comuns os infartos em zonas de fronteira vascular – e hemorragias parenquimatosas e pequenas HSA’s não-aneurismáticas na superfície cortical (essas últimas presumidamente em virtude da reperfusão). Síndrome da encefalopatia posterior reversível também já foi relatada com SVCR.

Angiografia cerebral é uma modalidade de neuroimagem crítica na avaliação de pacientes com suspeita de APSNC, porém há que se ter consciência de sua limitada especificidade, além do que é mais sensível para doenças de vasos mais calibrosos. A baixa especificidade, ressaltamos, deve levar a uma interpretação cautelosa dos achados angiográficos, pois áreas de redução luminal focal alternada com áreas de ectasia não são apanágio das vasculites, podendo ser esse aspecto encontrado em doenças vasoespásticas, infecciosas, embólicas e ateroscleróticas, bem como em estados de hipercoagulabilidade. Cabe, portanto, correlação com dados clínicos e estudo do líquor. Para dar exemplaridade disso, em casos patologicamente comprovados de AGSNC, a sensibilidade dos achados angiográficos é de 10-20%. Assim, a angiografia não é o procedimento de escolha no diagnóstico da AGSNC. Por outro lado, uma angiografia demonstrando envolvimento de múltiplos territórios e múltiplos vasos, levanta com alta probabilidade a hipótese de SVCR, pois são característicos da síndrome. Mais importante, contudo, é a demonstração de reversibilidade, essencial à confirmação diagnóstica.

A abordagem diagnóstica através de biópsia é geralmente empregada em pacientes com quadro clínico-laboratorial de meningite crônica e se há suspeita de etiologia infecciosa ou neoplásica. O procedimento de escolha é a biópsia aberta em cunha do pólo temporal não doominante, incluindo na retirada a leptomeninge sobrejacente e o córtex subjacente. Alternativamente, biópsia dirigida para uma área de realce leptomeníngeo, quando presente, pode aumentar a sensibilidade, que já é bastante baixa (com taxa de falsos negativos de até 25%). Além disso, o achado de vasculite não nos desobriga da pesquisa de agentes infecciosos ocultos nas amostras como causa de vasculite secundária.

Tratamento da AGSNC é basicamente baseado na extrapolação daquele realizado para vasculites sistêmicas, com imunossupressores/corticoterapia. Ao lado do controle liquórico, o papel da imagem no seguimento a cada 3-4 meses é monitorar progressão/recrudescência silenciosa durante a redução da dose dos medicamentos. No caso da SVCR, o uso de bloqueadores dos canais de cálcio, corticóides por curto perído (presumido efeito direto de reversão da vasoconstricção) ou sulfato de magnésio, sendo essencial exame de controle para documentar reversibilidade em 6-12 semanas. Na categoria de casos atípicos de APSNC, inicialmente usa-se corticoterapia, individualizando-se a necessidade de outros imunossupressores e de bloqueadores dos canais de cálcio, esses últimos em pacientes com quadro mais semelhante a SVCR.

1. Hajj-Ali RA, Calabrese LH. Central nervous system vasculitis. Curr Opin Rheumatol. 2009 Jan;21(1):10-8.

2. Cravioto H, Feigin I. Noninfectious granulomatous angiitis with a predilection for the nervous system. Neurology. 1959 Sep;9:599-609.

3. Calabrese LH, Mallek JA. Primary angiitis of the central nervous system. Report of 8 new cases, review of the literature, and proposal for diagnostic criteria. Medicine (Baltimore). 1988 Jan;67(1):20-39.

4. Calabrese LH, Gragg LA, Furlan AJ. Benign angiopathy: a distinct subset of angiographically defined primary angiitis of the central nervous system. J Rheumatol. 1993 Dec;20(12):2046-50.

5. Hajj-Ali RA, Furlan A, Abou-Chebel A, Calabrese LH. Benign angiopathy of the central nervous system: cohort of 16 patients with clinical course and long-term followup. Arthritis Rheum. 2002 Dec 15;47(6):662-9.

6. Calabrese LH, Dodick DW, Schwedt TJ, Singhal AB. Narrative review: reversible cerebral vasoconstriction syndromes. Ann Intern Med. 2007 Jan 2;146(1):34-44.